O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Nunes Marques solicitou ao Procurador-Geral da República (PGR) a instauração de investigação criminal contra Conrado Hübner Mendes, por supostos crimes contra a honra. O crime estaria nas críticas dirigidas por Conrado contra o ministro em coluna jornalística, ligadas à sua atuação judicial absolutamente convergente com a agenda política do presidente da República, especialmente no caso que envolveu a proibição de cultos religiosos durante a pandemia. Ele não foi o primeiro na intimidação penal: o precedente veio de outra autoridade também nomeada por Bolsonaro. O PGR, Augusto Aras, ajuizara poucos meses antes uma ação penal privada contra Conrado por crimes contra honra. Ele também não aceitou as críticas contra suas omissões diante dos crimes e desmandos do governo Bolsonaro. É muito importante que essas iniciativas não prosperem, pois elas não atingem apenas o réu e investigado, mas a toda a democracia brasileira.
Conrado é um jurista respeitadíssimo, professor de direito constitucional da USP, com formação também em ciência política. Escreveu obras densas e relevantes sobre a jurisdição constitucional, mas se tornou nacionalmente conhecido, para fora dos confins da academia jurídica, pelas suas colunas, publicadas inicialmente na revista Época, e depois no jornal Folha de S. Paulo.
Para além da qualidade primorosa do texto, o traço mais marcante das colunas de Conrado – presente também nas mensagens que publica no Twitter –, é o tom contundente que emprega para fustigar as autoridades e instituições que, no seu entendimento, não desempenham de modo adequado o seu papel constitucional. Progressista, comprometido até a medula com a democracia e com os direitos humanos, Conrado Hübner Mendes escreve sem medo de desagradar os poderosos. Ele se tornou o mais importante e corajoso crítico das instituições do nosso sistema de justiça, notadamente do STF. É um intelectual público no sentido mais profundo dessa expressão, que busca “falar a verdade ao poder”.
Nem sempre eu concordo com o que ele diz. Estou de pleno acordo com o seu diagnóstico sobre a degradação constitucional do país no governo Bolsonaro, mas não compartilho da sua avaliação tenebrosa sobre a atuação do STF. Concordo com Conrado quando aponta a existência de práticas não republicanas na Corte, quando ressalta o caráter caótico e opaco do seu processo decisório, ou quando destaca algumas graves omissões do Tribunal – diante, por exemplo, da criminalização da pobreza negra, decorrente da fracassada “guerra contra as drogas”, ou da perigosa escalada armamentista vivenciada nos últimos anos. Mas enxergo também o papel central que o Supremo vem exercendo na defesa de alguns direitos fundamentais, como as liberdades de expressão e de imprensa, a proteção das minorias sexuais ou a defesa da saúde, especialmente no contexto da pandemia do coronavírus. Onde ele vê um copo quase vazio, eu enxergo um que está pela metade. Essa divergência parcial não me impede, todavia, de louvar o papel fundamental que Conrado Hübner Mendes exerce na nossa democracia.
É que, durante muito tempo, as autoridades do sistema de justiça brasileiro se acostumaram com o tratamento excessivamente deferente que recebiam na esfera pública. Não eram muito criticadas pelas pessoas que exercem profissões jurídicas, que, naturalmente, preferem não se indispor com aqueles que podem vir a julgar seus processos, ou a exercer alguma influência sobre suas carreiras. Também não se submetiam a um escrutínio mais rigoroso da imprensa, já que os jornalistas, no mais das vezes, não se aventuravam a fazer críticas mais duras, por não dominarem as categorias e meandros do direito. A superação dessa postura excessivamente tímida – quando não marcada por salamaleques e puxa-saquismo – era fundamental.
Afinal, quanto mais relevantes as instituições numa sociedade, mais elas devem estar expostas à crítica pública. E, com a intensa judicialização da política vivenciada nas últimas décadas, as instituições do sistema de justiça se tornaram centrais na vida nacional.
Por isso, é tão importante o papel que Conrado Hübner Mendes vem desempenhando nos últimos anos, com suas colunas imperdíveis e seus tweets corajosos.
Não há verdadeira democracia quando as instituições e autoridades públicas não podem ser criticadas, inclusive de maneira contundente, jocosa, e até eventualmente injusta. O coração da liberdade de expressão – seu núcleo mais intensamente protegido – repousa exatamente aí. Essa, aliás, é a jurisprudência pacífica do STF, assentada na ADPF 130 – que afirmou a não recepção da Lei da Imprensa do regime militar – e reiterada tantas vezes pela Corte.
Evidentemente, a liberdade de expressão não se esgota na proibição da censura. Ações penais e investigações criminais contra críticos das autoridades e instituições também limitam gravemente a liberdade de expressão, em prejuízo de toda a sociedade. Elas exercem o que a jurisprudência denomina de “efeito resfriador” do discurso (chilling effect): o medo de represálias acaba fazendo com que muitos críticos se silenciem, em prejuízo de toda a sociedade, que ganha quando existe uma esfera pública aberta e dinâmica, em que abusos podem ser denunciados e discutidos sem temor. Por isso, devem ser interpretadas e aplicadas de modo absolutamente restritivo as normas penais que tipificam os crimes contra honra, quando as supostas vítimas forem autoridades públicas. Essa é uma exigência fundamental para a vitalidade da democracia.
Os textos de Conrado Hübner Mendes que geraram as iniciativas de silenciamento por parte de Augusto Aras e de Kássio Nunes Marques nada têm de criminosos. São críticas públicas duras, mas plenamente contidas nos limites da proteção constitucional à liberdade de expressão. Eles expressam, em linguagem contundente e irônica, uma preocupação legítima, movida pelo interesse público, relativa ao excessivo alinhamento com o governo de autoridades que, por imperativo constitucional, teriam de agir com absoluta independência. Uma preocupação, aliás, que é compartilhada por quase todos os que observam a atuação das instituições brasileiras.
Conrado já dirigiu críticas públicas a várias outras autoridades do sistema de justiça. Os ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, por exemplo, já foram duramente fustigados em suas colunas. Nenhum deles acionou penal ou civilmente o articulista. Não parece coincidência que as medidas penais – tão gravemente contrárias à liberdade de expressão e à democracia – partam justamente de autoridades nomeadas por Jair Bolsonaro.
É fundamental barrar essas tentativas de intimidação penal. Em jogo não está apenas a liberdade de Conrado Hübner Mendes, mas o futuro da nossa democracia.
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