PASEP é o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público, criado pela Lei Complementar nº 8/1970 e que, por força da Lei Complementar nº 26/1975, foi unificado ao PIS – Programa Integração Social, dando origem ao Fundo PIS-PASEP, que são programas que servem para financiar o pagamento de benefícios como o abono salarial e o seguro-desemprego.
Com efeito, a Constituição Federal de 1988 previu, no art. 239, que a arrecadação decorrente dessas duas contribuições sociais seria destinada ao Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT e serviria para financiar o programa do seguro-desemprego, o abono salarial ao servidor de baixa renda (um salário-mínimo anual – uma espécie de 14º salário – para quem percebe até dois salários mínimos de remuneração mensal) e dos programas de desenvolvimento econômico, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), na proporção de pelo menos 40% (quarenta por cento) dos recursos.
A lei federal 9.715 de 1998 dispõe sobre as contribuições para o PIS/PASEP e prevê, no caso das pessoas jurídicas de direito público interno, que sua apuração dar-se-á de forma mensal e com base no valor das receitas correntes arrecadas e das transferências correntes e de capital recebidas. A alíquota atualmente é de 1%, nos termos do inciso III do art. 8º da supramencionada lei.
A lei prevê, ainda, no art. 7º, que nessas receitas correntes deverão ser incluídas quaisquer receitas tributárias, ainda que arrecadadas, no todo ou em parte, por outra entidade da Administração Pública, mas que deverão ser deduzidas as transferências efetuadas a outras entidades públicas.
Esse é o panorama geral do instituto. Pois bem.
A Receita Federal do Brasil, por força do entendimento trazido recentemente pela Solução de Consulta n. 278/17, passou a entender que “a contribuição dos servidores e a contribuição patronal devem compor a base de cálculo da Contribuição para o PIS/PASEP, incidente sobre Receitas Governamentais dos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS).”
A conclusão surge após uma diferenciação feita pelo órgão federal, sem qualquer correspondência nas normas que regem o tema, entre transferências intragovernamentais constitucionais e legais e aquelas realizadas intraorçamentárias para outros órgãos ou fundos do mesmo Ente Federativo.
A diferenciação entre transferências intergovernamentais, intragovernamentais e intraorçamentárias é descabida para fins de definição da base de cálculo da contribuição para o PASEP, pois a Lei n.º 9.715/98 não efetua essa distinção em seus artigos 2º, inciso III, e 7º, sendo que a regra de interpretação literal prevista no artigo 111 do CTN não se confunde com interpretação restritiva. Calha à hipótese a seguinte lição[1] a respeito das regras de interpretação, previstas no artigo 108 e § 1º, do CTN:
“O Direito Tributário não se compatibiliza com a adoção de legalidade elástica, tipicidade flexível, reserva relativa da lei, prevalecendo os princípios da estrita legalidade, tipicidade fechada e reserva absoluta da lei formal, com o que interpretações extensivas ou de integração analógica são vedadas (art. 108, parágrafo 1º, do CTN)…”
De fato, a Lei n.º 9.715/98, ao permitir a dedução das transferências efetuadas a outras entidades públicas da base de cálculo do PASEP, não fez qualquer referência quanto à natureza financeira ou contábil dessas transferências. Com efeito, a regra de tributação pelo PASEP no tocante às transferências está disciplinada na Lei complementar n.º 08, de 03 de dezembro de 1979, recepcionada pela CF/88, conforme entendimento consolidado do STF (RE 148.754/RJ), estando previsto no artigo 2º, inciso II, “a”, que os Estados contribuirão para o Programa, mediante o recolhimento de percentual das receitas correntes próprias, deduzidas as transferências feitas a outras entidades da Administração Pública, sendo que, de acordo com o parágrafo único do mesmo artigo, “não recairá, em nenhuma hipótese, sobre as transferências de que trata esse artigo, mais de uma contribuição”.
Esse comando normativo foi repetido no artigo 7º em combinação com o inciso III do artigo 2º da Lei n.º 9.715/98. Isso significa que, para fins de tributação pelo PASEP, as movimentações financeiras entre os órgão e entidades da Administração, seja no mesmo ou em diferentes níveis governamentais, autoriza dedução da base de cálculo do ente que efetua a transferência. É irrelevante para fins do Direito Tributário a eventual a classificação do registro contábil dessas operações para fins de transparência dos recursos destinados ao Orçamento da Seguridade Social e para fins de anulação de dupla contagem.
O entendimento da SC Cosit n.º 278/2017 de que a cota patronal não pode ser deduzida da base de cálculo da contribuição ao PASEP pelos entes menores, apesar de as autarquias previdenciárias, em regra, incluí-las na base de cálculo do mesmo tributo pago pela pessoa jurídica da administração indireta, configura “bis in idem” e viola o princípio da vedação ao confisco e a proibição de tratamento desigual entre contribuintes, além de contrariar o princípio da proporcionalidade.
Andou bem o Ministro Gilmar Mendes, na análise do pedido liminar na ACO 3404, ao preconizar:
“Ora, se é possível excluírem-se os valores transferidos a outros entes da base de cálculo da contribuição do Pasep, igualmente é possível excluir as transferências previstas constitucional e legalmente para a entidade, de natureza pública, de previdência complementar, em atenção ao brocardo “ubi eadem ratio ibi eadem jus”. (tradução livre: onde há a mesma razão de fato deve haver a mesma razão de direito).”
Na verdade, causa espécie a determinação da Receita Federal, e fere o princípio da isonomia, tendo em vista que, no âmbito federal, dos repasses da União à entidade de previdência complementar são descontados do valor devido a título de contribuição ao Pasep (e cobrados unicamente da entidade recebedora). Qual o motivo de se exigir a cobrança dúplice no âmbito estadual ou municipal (tanto de quem repassa quanto de quem recebe)?
Os recursos da cota patronal são vinculados por lei e pela CF/88 ao pagamento de benefícios previdenciários. Esses, por sua vez, têm caráter contributivo, ou seja, os benefícios concedidos pelo RPPS devem ter correlação com o quanto das contribuições arrecadadas, de forma a preservar o equilíbrio financeiro do sistema. A exigência de dupla contribuição ao PASEP sobre a mesma base econômica, sobre os mesmos recursos da cota patronal repassadas ao RPPS, onera excessivamente a receita previdenciária e reduz as disponibilidades financeiras do Município, por meio da tributação de recursos que não se agregam ao patrimônio do ente público e que pertencem por lei à autarquia previdenciária responsável pela gestão unificada do RPPS.
A exigência de dupla contribuição ao PASEP pelos entes federados que tenham seu RPPS sob gestão de entidades autárquicas se revela contrário ao princípio da isonomia tributária, uma vez que representa tratamento diferenciado em relação às receitas da União. O §2º do artigo 2º da Lei n.º 9.715/98 prevê, em relação às receitas que a União transfere à sua autarquia previdenciária, o INSS, a incidência de apenas uma contribuição ao PASEP. Essa forma de recolhimento nunca foi questionada ou considerada ilegal pela Receita Federal.
Ressalte-se o quadro de completa insegurança jurídica: a União faz incidir apenas uma contribuição ao PASEP sobre as receitas de sua autarquia previdenciária e sobre os recursos classificados como receitas do Tesouro Nacional nos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social; contudo, a mesma União, por meio da SC Cosit n.º 278/17, pretende dispensar tratamento diferenciado aos mesmos recursos quando oriundos de Estados e Municípios, violando o artigo 150, inciso II, da CF/88. De forma ainda mais grave, a União, por meio do entendimento combatido, ameaça a autonomia política e financeira do ente e o equilíbrio que deve existir entre as entidades federadas. Viola, assim, também os artigos 1º, 18 e 60, § 4º, da CF/88.
Não existe diferença alguma, do ponto de vista do contribuinte, no repasse de valores da cota patronal e da cobertura de insuficiências financeiras realizada pela União à sua autarquia previdenciária e pelos Municípios aos seus institutos de Previdência. Sob a perspectiva da tributação dessas pessoas jurídicas, não há justificativa plausível para que esses recursos sejam tributados pelo PASEP duas vezes nos entes federados (uma pela autarquia e outra pela Administração Direta) e sofram apenas uma incidência no âmbito federal.
Trata-se, no caso, de hipótese típica de dupla incidência, pois se trata da exigência de pagamento da mesma contribuição sobre a mesma base econômica pelo mesmo ente tributante, sem a possibilidade de dedução e eliminação da dupla contagem.
E foi a esse entendimento que se chegou o Supremo Tribunal Federal na ACO 3404, proposta pelo estado do Rio Grande do Sul, em brilhante acórdão, cuja conclusão da decisão merece transcrição:
“i) a Lei 9.715/98 não efetuou qualquer distinção entre transferências intergovernamentais, intragovernamentais e intraorçamentárias, para fins de diferenciação da definição da base de cálculo da contribuição para o PASEP; ii) a Lei Complementar 8/1970, em seu art. 2º, inciso II, “a”, assevera que os Estados contribuirão para o programa, mediante o recolhimento de percentual das receitas correntes próprias, “deduzidas as transferências feitas a outras entidades da Administração Pública”; iii) o parágrafo único do art. 2º, inciso II, da referida LC 8/1970, expressamente vedou a incidência de mais de uma contribuição sobre essas transferências, in verbis, “não recairá, em nenhuma hipótese, sobre as transferências de que trata esse artigo, mais de uma contribuição” (comando repetido no art. 7º c/c inciso III do art. 2º da Lei 9.715/98; e iv) viola a isonomia admitir que, no âmbito federal, os repasses da União à entidade de previdência complementar possam ser descontados do valor devido a título de contribuição ao Pasep (e cobrados unicamente da entidade recebedora) e permitir a cobrança dúplice no âmbito estadual ou municipal (tanto de quem repassa quanto de quem recebe), declaro a ilegalidade e a inconstitucionalidade da inclusão na base de cálculo da contribuição para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP) paga pelo Estado do Rio Grande do Sul dos repasses de recursos do Tesouro Estadual, destinados ao pagamento de benefícios previdenciários (cobertura de insuficiências financeiras e cota patronal das contribuições previdenciárias) pelo Regime Próprio de Previdência Social (RPPS/RS), planos Financeiro (Regime de Repartição Simples) e Fundo Previdenciário (Fundoprev/RS – Regime de Capitalização)”.
Nesse mesmo sentido, foi a decisão da 13ª Vara Federal de Porto Alegre em julgou procedente o pedido realizado pelo Município de Porto Alegre em processo ajuizado em face da União.[2]
O novo entendimento é capaz de gerar economia de larga escala aos entes federativos menores[3] e manter a preservação do tratamento isonômico da tributação, necessário à preservação do pacto federativo.
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[1] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Diferença entre importação por encomenda e por conta e ordem. Regimes distintos para efeitos da incidência do IPI antes da Lei n.º 11.281/2006. Irretroatividade do novo regime a atos praticados no regime anterior. RDDT n.º 209/150, fev/2013).
[2] 5053863-70.2020.4.04.7100, JULGADO EM 12/07/2021.
[3] O Estado do Rio Grande do Sul fala em economia inicial de mais de 1 bilhão. No município de Porto Alegre, apenas a reversão do lançamento realizado gerará uma economia em torno de 20 milhões de reais.
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