Um “manual de política” no século XXI não poderia deixar de fora um capítulo sobre as redes sociais. Muito se discute sobre como as redes sociais impactaram a política, mas já não faz muito sentido discutir se esse impacto é ou não relevante.
Desde a campanha de 2018, o atual presidente da República Jair Bolsonaro repete efusivamente opor-se à “grande mídia” enquanto utiliza-se das redes sociais como meio preferido para comunicar-se com seu público.
Mesmo durante o mandato, é por meio de lives, transmissões ao vivo realizadas em redes sociais, que o presidente tem enviado seus sinais políticos. A predileção pelas redes acabou ofuscando a importância do tradicional programa de rádio “Voz do Brasil”, que teve seu horário flexibilizado por meio do decreto 10.456/2020, sinal dos tempos.
A relação com as redes sociais, no entanto, não se dá sem conflitos. No contexto da pandemia, por diversas vezes publicações do presidente foram taxadas ou excluídas por serem consideradas contrárias aos termos de uso de plataformas como o Facebook ou o Twitter, taxadas pelo presidente e por seus filhos como “redes sociais esquerdistas”.
Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump tinha uma relação semelhante com as redes. Utilizava-se dessas, principalmente o Twitter, como principal meio de comunicação com sua audiência enquanto criticava a “grande mídia”. Após a polarização resultante da eleição de 2020, que terminou com a vitória do Democrata Joe Biden, o perfil de Donald Trump naquela rede social foi suspenso permanentemente[1]. O Facebook também baniu Donald Trump de sua plataforma.
Esses banimentos motivaram o ex-presidente Donald Trump a anunciar sua própria rede social. De início, foi lançada uma página chamada “From the Desk of Donald J. Trump”, que consistia em uma página no estilo blog na qual continuava a linha de comunicação que adotava nos tempos de Twitter. Após menos de um mês no ar, a página foi descontinuada e várias matérias jornalísticas noticiaram que a retirada do blog se deu em função da baixa audiência.
O encerramento do blog, no entanto, tinha outro motivo. No início de julho a equipe de Donald Trump lançou sua própria rede social, denominada GETTR, que está disponível para download na App Store e na Google Play desde 03.07.2021.
A mudança do blog para uma rede social se justifica. Desde a consolidação das redes sociais, uma página no estilo blog dificilmente conseguiria manter o engajamento que as redes sociais conseguem desenvolver.
Daí a relevância dada às redes sociais também para o campo político. O engajamento, entendido como a quantidade de tempo e interações que o usuário mantém com a plataforma, produzido pela rede social é incomparável.
Os algoritmos das redes sociais utilizam-se de padrões de interação para alimentar feeds de notícia, com conteúdo que chame mais a atenção do usuário. Assim, se o usuário se interessa por questões políticas, o algoritmo da plataforma identifica a preferência daquele usuário com base nos conteúdos com os quais este demonstrou maior engajamento e passa a expor, preferencialmente, conteúdos relacionados com essa temática em seu feed de notícias. Essa dinâmica também é utilizada como uma das causas do fenômeno das “bolhas ideológicas”, já conhecido, e que diminui a exposição das bolhas a conteúdos com os quais discorda.
Assim, a própria formação da consciência política no século XXI tem sido cada vez mais influenciada pelas redes sociais e seu uso como meio de informação, seja pela forma com a qual as plataformas apresentam seu conteúdo (o meio é a mensagem, lembrando a célebre frase de Marshall McLuhan) seja pela escolha dos conteúdos apresentados.
Pensando nisso, é necessário refletir sobre o movimento de Donald Trump ao anunciar sua própria rede social. Em que pese a GETTR se apresentar como uma “nova rede social fundada sob os princípios da liberdade de expressão, liberdade de pensamento e rejeição à censura política e à cultura do cancelamento”[2], a rede social surge como um reduto republicano, que atrai também aqueles que se identificam com as bandeiras políticas defendidas por Donald Trump (toda a família Bolsonaro já conta com perfis na rede).
Mantendo-se esse cenário, a GETTR surge com uma diferença medular quando comparada com o Twitter e o Facebook que é a ausência de pluralismo. Se aproximando a um “clube fechado” as publicações tendem a representar um discurso uníssono em que se “prega para convertidos”.
Atingindo um número considerável de usuários, uma rede social com essa proposta traz inegável ganho, principalmente no que tange à articulação e à mobilização, mas deixa de fora outras dimensões centrais da política, principalmente a relação com discursos diversos, o que sobra nas redes sociais.
Uma das possíveis razões que fez com que as redes sociais ganhassem notoriedade no campo político encontra-se justamente no potencial de atração de muitas pessoas que discutem abertamente aspectos de sua vida, incluindo afiliações políticas, nessas redes. Essas interações geram um enorme banco de dados que podem ser entendidos como um termômetro do engajamento político sobre determinado tema.
Apesar de não ser tão simples assim[3], o monitoramento das redes sociais já é uma realidade e técnicas de PLN – processamento de linguagem natural – possibilitam a extração de informações de forma automatizada e em grande escala.
O PLN, subárea da Inteligência Artificial, consiste em processos de automatização computacional que possibilitam a classificação e organização de dados textuais e que está por traz de funcionalidades que já estão inseridas no cotidiano de quem utiliza smartphone como a tradução automática, assistentes virtuais, reconhecimento de fala entre outras funcionalidades.
Quem já está na internet há mais tempo se lembra que toda página costumava apresentar um “contador de visitas”, algo que já está fora de moda, mas que era muito comum em épocas de “Cadê?”. Assim, medir “tráfego” ou “número de visualizações” não é nada novo. No entanto, com o uso de tecnologias como o PLN, é possível “ler” cenários muito mais complexos. Em vez de medidas lineares, o PLN possibilita obter informações muito mais acuradas.
Quais textos geraram maior engajamento? O engajamento foi mais ou menos positivo? Qual influenciador digital tem mais sucesso em convencer seus interlocutores? Qual tipo de discurso é mais eficiente?
Essas informações podem se mostrar preciosas no jogo político e no processo de produção normativa moderna, na medida em que tais elementos são relevantes na influência sobre a vontade política de grupos organizados.
Voltando ao GETTR, mantendo-se a proposta de uma rede de discurso uníssono, mesmo a aplicação de tecnologias de PLN não traria informações como as ditas acima. Os próprios dados colhidos em uma rede com discurso uníssono demonstrariam apenas engajamento, concordância e discursos positivos, afastando-se da complexidade das redes sociais.
Ao refletir sobre a construção histórica da noção de um Estado Constitucional, o autor Gustavo Zagrebelsky[4] narrou a importância do surgimento do Estado de Direito que compreendia a representação eletiva e a separação dos poderes, características apontadas como essenciais contra as arbitrariedades do absolutismo.
Daí teriam surgido as noções de supremacia política do Legislativo que submeteria o Poder Executivo a fazer apenas aquilo que a lei lhe permitia e limitando o Poder Judiciário à função de “boca da lei”, fundada na lógica de que o poder legislativo seria o responsável por dar voz ao povo e criar um ordenamento jurídico.
No mundo atual, a ideia de ordenamento já se mostra datada, na medida em que cada vez mais a legislação assume o papel de representação normativa da vontade política de grupos organizados, muitas vezes contraditória e conflituosa. Nesse contexto, é extremamente relevante à ciência do Direito acompanhar o processo de surgimento da Lei.
Prevalecendo a tendência de “redes próprias”, divisão de discursos e até mesmo dos meios nos quais esses discursos são externados, a riqueza da diversidade fica prejudicada.
Eis um dos mistérios desse tempo de política nas redes sociais. O potencial e o êxito das redes sociais têm explorado o desejo humano de se manifestar e de ser ouvido, sendo a política uma das dimensões dos discursos que espelham a vida. A separação ou segmentação das redes, que acaba por sacrificar a complexidade da diversidade, manterá esse potencial?
[1] https://blog.twitter.com/en_us/topics/company/2020/suspension
[2] Tradução livre. https://play.google.com/store/apps/details?id=com.gettr.gettr&hl=en_US&gl=US
Acesso em 09.07.2021.
[3] Ver o relatório da FGV – NEM TÃO #SIMPLES ASSIM: O DESAFIO DE MONITORAR POLÍTICAS PÚBLICAS NAS REDES SOCIAIS. <http://dapp.fgv.br/publicacao/nem-tao-simples-assim-o-desafio-de-monitorar-politicas-publicas-nas-redes-sociais/> Acesso em 09.07.2021.
[4] ZAGREBELSKY, Gustavo. El Derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. 6. ed. Madrid: Editorial Trotta, 2005.
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