“Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão de mundo e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados em nossa própria terra”.
– Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil.
“O Brasil não é para principiantes”, alertava o maestro Antônio Carlos Jobim. Ao lado das jabuticabas, nossa civilização nos trópicos se especializou em reciclar produtos intelectuais para consumo nativo, cujo sentido e expressão particulares só existem aqui e que, muitas vezes, operam em oposição mesma ao sentido que essas idéias têm em outros lugares. A antropofagia é o mecanismo intelectual par excellence de Pindorama.
O mecanismo de reprodução social desse fenômeno foi analisado por Roberto Schwarz em “As Idéias Fora do Lugar”.[1] Segundo Schwarz, ao longo de sua história, o Brasil demonstrou uma tendência marcante de importar idéias europeias, sempre, contudo, “em sentido impróprio.”[2] Ideias e institutos são gestados em ambientes psicossociais próprios, que, quando importados para um ambiente cuja a matriz social é marcada pela escravidão e pelo clientelismo, acabam adquirindo o sentido oposto daquele originalmente pretendido. Em um sistema de produção escravocrata ou clientelista, as idéias liberais, por exemplo, serviam para reforçar o atraso e a opressão, tornando-se, no mais das vezes, um mero adorno cínico no teatro da descrença nacional. Verdadeiros abaporus antropofágicos, especializamo-nos em devorar apressadamente idéias estrangeiras, para depois regurgitá-las de maneira deformada, geralmente anulando o seu proposito original.
Atualmente, o fenômeno de importação das idéias fora do seu eixo se repete, desta vez com a noção de common law e de seus pretensos institutos corolários. O termo mesmo, que em direito inglês possui um significado histórico preciso, já vem sendo empregado por nós de forma distorcida e deslocada.
“Common law” vem sendo entendido no Brasil como designando o conjunto da tradição jurídica anglo-saxã, baseada na preponderância dos precedentes judiciais como fonte privilegiada do direito. A partir daí, desenvolveu-se já uma forma tupiniquim de se analisar a jurisprudência pátria – e de se invocar precedentes judiciais estrangeiros como autoridade – que, antes de mais nada, é tecnicamente equivocada. Verdadeira jabuticaba, estamos a inventar a nossa própria “common law”.
O termo em inglês, como dito acima, tem um significado histórico preciso. Antes da conquista normanda das ilhas britânicas, não havia uma legislação geral com jurisdição sobre todo o território do reino. Ao contrário, cada parte do país era regido por uma lei e por um costume locais, fortemente influenciados pela cultura das invasões que as ilhas haviam sofrido desde o final do Império Romano. Assim, por exemplo, o direito dinamarquês era vigente no norte do país. Uma das principais obras de William o Conquistador, que tomara o trono inglês em 1066, fora a de estabelecer, pela primeira vez, um governo central, que operava uma corte legal itinerante, percorrendo o país e colacionando os diversos costumes locais com o objetivo de criar uma padronização legal, um direito comum (common law) a todo o reino.
Esse processo de seleção e análise de costumes e precedentes judiciais durou séculos e, de certa forma, se prolonga até os dias atuais. Há, contudo, uma série de marcos nesse processo histórico, como, por exemplo, o Tractatus de legibus et consuetudinibus regni Angliae, também conhecido como “Tratado de Glanvill”, redigido pelo jurista Ranulf de Glanvill entre 1187 e 1189 por ordem do rei Henrique II (1133-1189). Trata-se do primeiro tratado do direito inglês, que compilava o esforço de quase dois séculos anteriores de organização de um direito comum baseado no princípio do stare decisis, um conceito muito similar ao de “coisa julgada” no direito romano. O tratado trouxe uma série de inovações revolucionárias, como a instituição das “formas de ação” (writs), que tinham por objetivo reforçar a jurisdição da coroa, uma vez que durante toda a Idade Média houve uma longa disputa jurisdicional dela com o Igreja, detentora do Direito Canônico, cujo apogeu foi o embate entre Henrique II e São Tomás Becket, eternizado por T.S. Eliot na peça “Assassinato na Catedral”.
O sentido originário da common law, portanto, era o de estruturar e solidificar a legitimidade da conquista normanda – e da sua centralização administrativa – pelo respeito e pela valorização dos costumes e tradições locais. Era, em suma, uma solução de compromisso que perpetuava as tradições pré-medievais das ilhas britânicas, selecionando-as segundo o interesse da elite normanda. Daí o termo “Lei da Terra” (Law of the Land), consagrado na famosa Cláusula 39 da Magna Carta (1215).[3] Trata-se, portanto, de um processo político-sociológico muito circunscrito histórica e geograficamente que, entretanto, devido à expansão do Império Britânico na era moderna, acabou por ser transplantado para as suas colônias ao redor do globo.
Divago, contudo. O fundamental aqui é que o termo “common law” como vem sendo usado no Brasil somente pode ser empregado, na melhor das hipóteses, em sentido metonímico. O sistema jurídico inglês – e, por conseguinte, o de outros países por ele influenciado, como os EUA, a Austrália e a África do Sul -, compõe-se de um complexo de pelo menos 7 principais subsistemas, cada qual se originando de uma fonte específica do direito. Os casos judiciais – ou a “common law” – são apenas um desses subsistemas que, conquanto constituam a base do edifício, operam em um diálogo, não sempre harmonioso, com os Atos do Parlamento (Statutes), a Interpretação Legal, a Legislação Delegada, o Costume, a Equidade, os Tratados internacionais e, até 31 de janeiro de 2020, também o direito da União Européia. A complexidade da inter-relação entre esses diversos subsistemas, por si só, atesta para a dimensão da genialidade de Napoleão Bonaparte, que, com a revolução da codificação, organizou e simplificou os sistemas jurídicos continentais em torno de uma fonte privilegiada do direito: a Lei.
Nos sistemas jurídicos de inspiração anglo-saxã, ao contrário do comumente entendido no Brasil, os precedentes judiciais – a “common law” – não são a fonte primordial do direito. Eles se submetem hierarquicamente, por exemplo, aos Atos do Parlamento (Statutes) e à Equidade. O princípio fundamental da Constituição inglesa, de fato, é o da “supremacia do Parlamento”, isto é, o de que os Atos do Parlamento são a fonte mais alta do direito inglês. Albert Venn Dicey, o maior constitucionalista inglês, em clássica formulação, clarificou que “o Parlamento tem, sob a Constituição inglesa, o direito de fazer ou desfazer qualquer lei que seja; e, além disso, que a nenhuma pessoa ou agência é reconhecida pela lei da Inglaterra como tendo um direito para se sobrepor a ou para desconsiderar a legislação do Parlamento.” Vê-se claramente, portanto, que o papel da common law no sistema jurídico inglês é muito mais relativo do que prega a imaginação tupiniquim. A lei é a fonte primordial do direito também na tradição anglo-saxã.
Um aspecto interessante da tendência brasileira de importar idéias fora do lugar, por fim, está no marcado anacronismo desse processo sociológico. Roberto Schwarz nota que, com relação ao Liberalismo no século XIX, as suas idéias, importadas pelas elites brasileiras, “tomam a função de… ornato e marca de fidalguia: atestam e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa que se… industrializa. O quiproquó das idéias não poderia ser maior”.[4] Em processo análogo, os institutos da “common law” são transplantados para o nosso direito, de formação marcadamente romanística, em um momento em que a Europa se convulsiona na dúvida mordaz da possibilidade mesma de coexistência entre as duas tradições jurídicas. Há quem goste de entrar em bola dividida. O Brasil, definitivamente, não é para principiantes.
[1] SCHWARZ, R. As Idéias For a do Lugar: ensaios selecionados. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.
[2] Ibid, p. 62.
[3] “No Freeman shall be taken or imprisoned, or be disseised of his Freehold, or Liberties, or free Customs, or be outlawed, or exiled, or any other wise destroyed; nor will We not pass upon him, nor condemn him, but by lawful judgment of his Peers, or by the Law of the Land.”
[4] Ibid, p. 54.
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