Fosse um seriado, o combate aos supersalários na Administração Pública brasileira seria desses longos e enfadonhos. Teria começado com a promulgação da Constituição de 1988 e com toda a expectativa criada com a primeira eleição direta para Presidente da República depois de quase 30 anos. Ganhou o caçador de marajás. Expectativa: fim das mordomias. Desfecho: retórica vazia e medidas espetaculosas não eliminaram os supersalários.
A segunda etapa da saga apresentou-se com ares de embate definitivo. Pouco antes de completar uma década de vigência, a Constituição foi reformada e incorporou regras rígidas para aniquilar o inimigo. O teto remuneratório foi reforçado. Ele deixou de atingir apenas o valor nominal a ser pago pelo exercício de cada cargo ou função, passando a limitar toda a remuneração percebida pelos servidores, inclusive os chamados penduricalhos (designação vulgar de qualquer acréscimo à remuneração base). Nenhum servidor poderia ganhar mais do que percebesse Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A reforma incorporou nova arma no combate aos supersalários: o subsídio. Cargos mais elevados da estrutura estatal passariam a ser remunerados por parcela única. Esperava-se eliminar penduricalhos de contracheques polpudos.
Seguiu-se temporada arrastada, ao longo da qual foi possível observar a luta pela sobrevivência dos supersalários. A reviravolta ganhou corpo com discreta fissura no teto remuneratório.
Em 2005, foi aprovada emenda constitucional que excluiu do teto “as parcelas de caráter indenizatório” pagas aos servidores. Com isso, paulatinamente, os supersalários passaram a incorporar variadas “indenizações” para compensar gastos corriqueiros com moradia, educação privada de filhos, indumentária, entre outros pretextos.
Teses mirabolantes para furar o teto foram lançadas contra o teor literal da Constituição e assimiladas por Cortes Superiores. Seguiram-se inúmeros episódios de sangria aos cofres públicos, sem a graça de Tarantino. A sequência se encerra com a descoberta, em plena pandemia, de que a maioria dos membros de impoluta categoria recebera acima do teto.
Nova temporada acaba de ser lançada com a abertura de duas frentes legislativas para reprimir supersalários. Mais uma proposta de emenda constitucional para evitar práticas identificadas com tais distorções. Sensação de déjà vu. Simultaneamente caminha projeto de lei que busca impedir abusos na concessão de verbas indenizatórias a servidores. O uso de lei nacional como arma contra supersalários é inédito.
A audiência está farta da narrativa pendular. Normas de maior concretude podem escapar de interpretações negacionistas. O projeto de lei tem foco e contempla regras detalhadas, como a fixação de limite percentual para certas verbas indenizatórias. Para que a saga termine, contudo, é necessário neutralizar inimigo poderoso. A elite beneficiária de supersalários tem poder para interpretar e até modificar regras de contenção. É a sabotagem à eficácia dessas regras que nos prende a esse indesejado looping.
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