A pandemia exigiu do Supremo Tribunal Federal (STF) o exercício constante de sua competência na lógica de freios e contrapesos da Constituição Federal. O enfrentamento à Covid-19 trouxe desafios de ordem prática, de cunho político e jurídico, por conta de dois elementos centrais: (i) a incerteza científica e o risco a ela inerente, o que aumenta o grau de complexidade da tomada de decisão; e (ii) a pluralidade de centros de poder decisório, com decisões simultâneas e muitas vezes conflitantes – União versus Estados, por exemplo.
O instrumento de base para atuação dos gestores e agentes públicos tem sido a Lei nº 13.979/2020, ou Lei da Pandemia. A lei foi editada para conferir legitimidade às ações emergenciais adotadas na pandemia (art. 3º), criando, ainda, parâmetros abertos e gerais de observância obrigatória em âmbito nacional. Tais parâmetros estão no §1º e irão exigir que as medidas adotadas: tenham “evidências científicas”, contenham análise de “informações estratégicas em saúde” e sejam “limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável”.
Nesse sentido, a lei trouxe a ciência para o sistema jurídico, como critério de controle e, por consequência, de observância obrigatória na atividade do gestor. A importância da ciência é inequívoca em contextos como o presente. Contudo, é igualmente prudente reconhecer que as condutas mais adequadas e até mesmo as evidências científicas estão sujeitas a alterações ao longo da pandemia. Na medida em que as pesquisas avançam, igualmente se consolida o conhecimento acerca de medidas eficazes e ineficazes no enfrentamento da Covid-19.
Nesse sentido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), no seu papel de atestar segurança e eficácia de medicamentos, desempenha competência essencial. Em paralelo, pesquisas em cursos nas universidades, inclusive por meio de parcerias público-privadas, reforçam o cenário. Mas não é só: referenciais de outros países como critério também podem e devem ser utilizados.
Não à toa, para determinados casos, a própria lei conferiu a agências de saúde internacionais status de referência para comprovação de segurança: é o caso da autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde, que não tenham registro na ANVISA, por exemplo. Ainda que não tenham o registro nacional, se tiverem sido autorizados nos EUA, Europa ou Japão, podem ser importadas para utilização no Brasil.
As controvérsias da pandemia chegaram ao STF, em diversos casos. Com a lente no controle concentrado, pela análise de Ações Diretas de Inconstitucionalidade que trataram da questão técnica, é possível concluir que a Corte reforçou a importância das evidências científicas na tomada de decisão.
Na ADI 6.341, o Plenário, referendando cautelar deferida pelo Min. Marco Aurélio, entendeu que a solução de conflitos de competência entre os entes federativos, durante a pandemia do coronavírus, deve pautar-se pela melhor realização do direito à saúde, amparada em evidências científicas e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Já a ADI 6.421 envolveu a discussão sobre a responsabilização de agentes públicos da MP 966/2020, por ação e omissão pertinentes a atos relacionados com a pandemia da Covid-19. O Plenário da Corte deferiu parcialmente a cautelar, fixando que, para avaliar se o administrador público incorreu em erro grosseiro ou culpa grave, devem ser analisados dois critérios: (i) o uso de evidências e standards científicos e (ii) princípios constitucionais da prevenção e da precaução.
Por sua vez, na ADI 6.362, o Plenário do STF julgou improcedente a ação, entendendo que não cabe ao Judiciário intervir de forma prévia à requisição por ser um ato administrativo discricionário do Poder Executivo. No entanto, consignou que as requisições, ainda que independam do prévio consentimento do Ministério da Saúde, precisam considerar evidências científicas e análises sobre as informações estratégicas antes de efetivá-las.
Na ADI 6.625, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu cautelar monocrática, posteriormente referendada pelo Plenário, para conferir interpretação conforme a constituição ao art. 8º da Lei nº 13.979/2020. Tal dispositivo vincula a vigência da referida lei ao Decreto Legislativo nº 6/2020, que estabeleceu a situação de calamidade pública para fins exclusivamente fiscais somente até 31 de dezembro de 2020. Nesse sentido, não obstante o decreto legislativo não estar mais vigente, o STF determinou pela vigência da lei enquanto durar a pandemia de acordo com as evidências científicas.
Por fim, no julgamento da ADI 6.586, o Plenário do STF julgou parcialmente procedente a ação, garantindo a possibilidade de medidas indiretas para a implementação da vacinação compulsória, com a possibilidade de restrições ao exercício de direitos e atividades desde que previstas em lei, ou dela decorrentes desde que, dentre outros requisitos, tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes.
O STF, em tais julgados, consolidou posicionamento que já vinha adotando quanto à prevalência da técnica, como o fez no caso da pílula do câncer. Na ADI 5.501, lei que havia autorizado o uso da substância fosfoetanolamina sintética no Brasil foi declarada inconstitucional. No julgamento não-unânime, houve debate acerca da capacidade institucional do legislativo sobre a matéria e, paralelamente, o reconhecimento da capacidade técnica da ANVISA e a necessidade de evidências científicas por trás do ato normativo.
O caminho do STF parece adequado, mas o atual desafio exige mais. É preciso ressaltar a importância da atualidade das evidências científicas, pautada em referenciais comparados e na revisão da motivação do gestor acerca das suas decisões. A incerteza e seu risco assim determinam: é preciso agir, mas é preciso também se comprometer a rever constantemente o caminho adotado para a política pública, em prol, sempre, da promoção à saúde.
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