O romance Torto Arado,[1] de Itamar Vieira Junior, vencedor de vários prêmios literários, vem alavancando cada vez mais leitores com uma história sobre um Brasil profundo (profundo em todas as suas acepções) em que a exploração de mão de obra antes escravizada continua a ser realizada por outros meios e formas. A população negra do campo, que em tese alcançou a liberdade completa em 1888, permanece por gerações a sofrer violências de todas as naturezas.
Esse Brasil profundo, em desenho geral e visto de forma ampla, tem seu paralelo nas grandes cidades, em que a população historicamente excluída e racializada permanece há tempos vivendo sob as mesmas condições de miséria e indignidade, ilustrada agora naquilo que se chama de trabalho em plataformas digitais. Esse paralelo pode ser bem representado não por uma obra de ficção inspirada na realidade, como em Torto Arado, mas por vídeos realizados em aparelhos celulares que ganharam a grande mídia após espalharem-se pelas redes sociais.
O último desses vídeos que se tornou viral apresenta um sócio de restaurante, não identificado pelo nome em nenhuma reportagem, que hostiliza entregador de comida que se encontrava descansando em um canto das docas do Shopping Center em que funciona seu negócio. As docas são pontos longe do acesso dos clientes, ficando geralmente às costas dos centros comerciais, e ali se realizam os trabalhos de carga e descarga de mercadorias.
Mesmo não se tratando de um lugar nobre, o empresário, de pele branca, insiste aos berros que o trabalhador, de pele escura, não deve ficar naquele local, muito menos recarregar o seu celular ali. Afirma expressamente ao trabalhador que ele é folgado e que ali não é a casa dele, falando-lhe que não paga 140 mil reais de aluguel para que entregador fique de folga no estabelecimento.
A comparação que se pode desenhar com o universo de Torto Arado é incrível: o novo dono da fazenda, na parte final do livro, apresenta-se de forma agressiva aos trabalhadores rurais, proibindo-os de construir casas de alvenaria e mesmo de enterrar seus defuntos naquelas terras, afirmando-se como proprietário e senhor dos destinos de todos e de tudo ali.
Mas as coincidências, resguardadas as diferenças de tempo e lugar, não param por aí. Em Torto Arado os trabalhadores afirmavam “viver de morada”: pediam para ficar na fazenda e trabalhavam na terra em troca da oportunidade, que poderia incluir uma agricultura de subsistência nos arredores da casa, coletas de frutos como buriti e dendê e ainda pescar no rio. Muitos dos trabalhadores em plataforma, similarmente, percebem-na como um lugar que dá trabalho a quem quiser trabalhar e em troca disso deixam parte de seus ganhos para essas empresas após longas horas.
Assim explicou Zeca Chapéu Grande ao seu filho: “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento.”(…) Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente pra trabalho: ‘Moço, o senhor me dá morada?’”.[2]
Quando havia em Água Negra, a fazenda onde se passa a história contada no livro, alguém a questionar a injustiça da situação exploratória que viviam, logo essa objeção era rechaçada com o discurso da gratidão aos donos da terra por terem acolhido e dado trabalho a eles. Essa situação se dá da mesma forma em Torto Arado e nas plataformas digitais tortas, as quais são às vezes aclamadas por “dar trabalho”.
Em Torto Arado, os proprietários nunca apareciam (somente quando as terras são vendidas é que o novo proprietário se faz presente de forma ostensiva, como visto acima). Era Sutério, o gerente-capataz, quem dava as ordens de fazer barragem, capinar, deixar a terra livre. Ele que dizia como deveriam e como não deveriam ser as casas dos trabalhadores, o que eles deviam e o que não podiam fazer.
Os algoritmos das plataformas digitais são o equivalente de Sutério: os proprietários não precisam aparecer para que as ordens sejam dadas e se façam cumpridas.
Sutério também tomava os frutos do trabalho à força dos trabalhadores: passava nas casas e pegava batatas, feijão, abóbora e folhas de chá. Alguém disse “Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana!”. Outro respondia, com misto de deboche e indignação: “Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo.”[3] Pois a situação é bem similar aos inúmeros relatos de trabalhadores de plataforma em que as empresas ficam com parte dos ganhos dos trabalhadores de forma irregular, por meio de cancelamento de pagamentos, apropriação de gorjetas ou apontamentos fraudulentos de valores cobrados dos clientes.
O receio de serem dispensados a qualquer momento, como dito acima, e ficarem sem sustento, é o melhor trunfo dos exploradores do trabalho: no vídeo do sócio do restaurante, este ameaça dizendo que iria mandar a Ifood excluir o trabalhador, que ele não trabalharia mais lá. Em Torto Arado se diz: “Aquela fazenda sempre teria donos, e nós éramos meros trabalhadores, sem direito sobre ela”.[4]
Outro paralelo que se sobressai é a solução das leis para a questão. Em Torto Arado, o que se percebe não é a ausência de leis: os trabalhadores sabem que são explorados e que têm direito a terra, por serem quilombolas, ou que deveriam receber remuneração, por trabalharem para os donos da fazenda. O que falta são instituições para aplicá-la, ou uma aplicação correta pelas instituições quando aparecem.
A única instituição que aparece em Torto Arado, a polícia, toma uma decisão desviada dos fatos para favorecer os donos da fazenda. Da mesma forma acontece com as plataformas digitais: temos leis, inclusive o dispositivo específico que prevê a subordinação algorítmica.[5] Temos a solução do trabalho avulso ou do trabalho intermitente pronto para serem utilizados, se assim se quisesse. Mas os dispositivos legais são ignorados, acabando por proteger os proprietários das plataformas em detrimento da proteção dos trabalhadores de óbvia e ululante necessidade
O torto e velho arado que dá título ao livro faz com que a terra fique infértil, destruída, dilacerada. A torta e nova utilização das plataformas digitais para a exploração de trabalhadores em sua maioria negros e despossuídos, que somente conseguem obter remuneração para a sobrevivência após se submeterem exaustivas e perigosas jornadas de trabalho,[6] faz com que a sociedade seja infértil, se destrua e permaneça dilacerada.
Como se diz em Torto Arado, “O vento não sopra, ele é a própria viração. Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida.”[7] As plataformas digitais não fazem intermediação de serviços, elas criam, modelam e organizam o próprio serviço que afirmam somente mediar.
Terminemos com uma frase de Zeca Chapéu Grande: “Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra não é nada.”[8] Uai, Zeca Chapéu Grande estava falando das plataformas digitais?
[1] VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.
[2] Idem, P. 185.
[3] Idem, p. 45.
[4] Idem, p. 79.
[5] Art. 6ª, Parágrafo único, CLT. “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.
[6] ABÍLIO, Ludmila Costhek et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. In Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020.
[7] Idem, p. 99.
[8] Idem, p. 186.
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